HOMENAGEM AOS NEGROS DA FAMÍLIA

Escrito por Ana Lucia Braga

Sex, 06 de Julho de 2012 01:05h.

 

Olho para muitas famílias e vejo o quantum de problemas, as repetições. Padrões que se estabelecem invisivelmente, que vão tomando as pessoas, inconscientemente. Pessoas que são guiadas pela consciência sistêmica como se tivessem uma bússola interna, que as levam para os mesmos lugares comuns ocupados por sua ancestralidade remota, distante ou recente.

Isso passa pelos seus gostos, seus sentimentos, seus sucessos e seus fracassos. Seus amores e desamores. Pelos dissabores. Por seu comportamento, por sua fraqueza, e também por sua força.

Olho para um sofrimento transgeracional.

Penso em mim antes das Constelações. Em meus emaranhamentos. Em minha família.

...É de lá que venho. É também a minha origem. Do outro lado do oceano.

Tenho uma imagem, que fiz em 2005, ao encontrar pela primeira vez uma tia, irmã de meu pai.

Na verdade ela me contou sobre uma velha negra, sua parente. Era uma negra, debruçada na janela, olhando a praia de Ramos, quando ainda nem existia toda aquela poluição na Baía de Guanabara. Tenho a imagem da negra, velha e pobre. Foi escrava. Viveu em alguma senzala do Rio de Janeiro.

Penso que, apesar de ter sido escrava, essa tia tataravó, como todos os seres humanos, recorreu à memória coletiva de seu povo, e deve, de algum modo, também ter contribuído com ela,.

Lembro-me do Navio Negreiro, de Castro Alves.

“Donde vem? onde vai? Das naus errantes

Quem sabe o rumo se é tão grande o espaço?”

Que importa do nauta o berço,

Donde é filho, qual seu lar? ”

 

Tal como a herança de hábitos pode depender de influências diretas de fenômenos semelhantes anteriores, a memória de organismos individuais pode depender de influências diretas do seu próprio passado, com as quais ‘nos sintonizamos’, diz Ruppert Sheldrake.

 

“Desce do espaço imenso, ó águia do oceano!

Desce mais ... inda mais... não pode olhar humano

Como o teu mergulhar no brigue voador!

Mas que vejo eu aí... Que quadro d'amarguras!

É canto funeral! ... Que tétricas figuras!

Que cena infame e vil... Meu Deus! Meu Deus! Que horror!”

Os negros vieram em navios e viveram durante anos em cativeiro, tratados como bichos por aqui. Os primeiros a serem livres, foram os que puderam comprar cartas de alforria. Depois vieram as leis: sexagenário, ventre livre.

Mas as dores continuavam e, de certa forma, ainda continuam. O cativeiro também, para muitos e muitos brasileiros. Como quebrar o ciclo de miséria e dependência?

 

“Era um sonho dantesco... o tombadilho

Que das luzernas avermelha o brilho.

Em sangue a se banhar.

Tinir de ferros... estalar de açoite...

Legiões de homens negros como a noite,

Horrendos a dançar...

Negras mulheres, suspendendo às tetas

Magras crianças, cujas bocas pretas

Rega o sangue das mães:

Outras moças, mas nuas e espantadas,

No turbilhão de espectros arrastadas,

Em ânsia e mágoa vãs!

 

Repetição: não havia saída. Sem dinheiro, sem oportunidades. Sem estudos, obrigados a aceitar qualquer coisa, qualquer trabalho, qualquer migalha, em troca da sobrevivência.

 

Presa nos elos de uma só cadeia,

A multidão faminta cambaleia,

E chora e dança ali!

Um de raiva delira, outro enlouquece,

Outro, que martírios embrutece,

Cantando, geme e ri!

 

O homem escravizado por conta de sua cor de pele não tinha direitos. Tiraram-lhe a dignidade.

Rebelou-se, claro. Temos conhecimento da história, de Zumbi dos Palmares, dos Quilombos. A luta foi uma constante. E ainda é. Pois, quebrar os padrões que envolvem o medo, a pobreza ainda reinante, a exclusão social, são tarefas que ainda se impõem.

 

Qual um sonho dantesco as sombras voam!...

Gritos, ais, maldições, preces ressoam!

E ri-se Satanás!...”

 

O sofrimento, os aspectos negativos, aqueles que envolvem as desordens sistêmicas como as exclusões, acabam perpetuados dentro das famílias.

Quantos negros foram excluídos? Excluídos lá na África, perdidos, esquecidos por um ou outro que ficou.

Excluídos aqui, pois separados de seus familiares, já nem sabiam mais quem eram.

Excluídos por conta de todos os filhos não nascidos. De todos os mortos bem pequenos... Por todos os filhos arrancados das negras para trabalhar em outras paragens, com outros donos.

 

“Quem são estes desgraçados”

“Quem são?”

“São os filhos do deserto,

Onde a terra esposa a luz.

Onde vive em campo aberto

A tribo dos homens nus...

São os guerreiros ousados

Que com os tigres mosqueados

Combatem na solidão.

Ontem simples, fortes, bravos.

Hoje míseros escravos,

Sem luz, sem ar, sem razão. . .”

“Desertos... desertos só...

E a fome, o cansaço, a sede...

Ai! quanto infeliz que cede,

E cai p'ra não mais s'erguer!...

Vaga um lugar na cadeia,

Mas o chacal sobre a areia

Acha um corpo que roer.”

 

Segundo a Lei da Pertinência, se alguém esta excluído, ou de algum modo é expulso, será representado por outro familiar que nascer mais tarde. O destino do excluído será repetido pelo novo membro da família, numa tentativa vã de trazê-lo de volta, de representá-lo.

Se alguém morreu precocemente, sabemos que esta morte exerce forte influência sobre todo o sistema. Aqui vemos a dinâmica sistêmica: “eu sigo você em seu destino”, se o destino é a morte precoce, “eu sigo você na morte”. Irmãos do morto, de algum modo, passam a buscar a morte. Muitos, inclusive, por acidentes, uso de drogas ou álcool e volante.

 

“Ontem plena liberdade,

A vontade por poder...

Hoje... cúm'lo de maldade,

Nem são livres p'ra morrer.

Prende-os a mesma corrente

— Férrea, lúgubre serpente —

Nas roscas da escravidão.

E assim zombando da morte,

Dança a lúgubre coorte

Ao som do açoute... Irrisão!...”

 

Pobres historicamente, o preconceito ainda ronda os negros, basta olhar as pesquisas.

A liberdade gerou a busca por um pedaço de terra, por trabalho, por estudo. O desejo pela igualdade, nas relações culturais, nas relações de trabalho, nas relações de poder. Mas, sabemos, existe até hoje uma certa invisibilidade social. A luta não foi suficiente, pois a condição de vida ainda é menos favorecida.

Além da análise socioeconômica, que pode apontar a falta de proteção especial aos negros logo após a escravidão, a falta de vontade política, já que é o “macho adulto branco” que continua no comando, trago, aqui a análise sistêmica, que aponta para a dificuldade de se quebrar padrões, de se fazer diferente. E os nossos são padrões marginais, profundamente arraigados em nossa cultura, em nosso cotidiano.

Cada membro da família, do campo sistêmico, é moldado e também contribui para moldar o próprio campo, influenciando os membros futuros. Isso implica a memória e o comportamento dos futuros parentes. Sheldrake chama esse fenômeno de ressonância mórfica, que, segundo ele, “ocorre com base na semelhança.” “Quanto mais organismos semelhantes houver, maior será sua influencia cumulativa, baseia-se na semelhança. Através desta ressonância, padrões de atividades passadas influenciam os campos de sistemas semelhantes posteriores”.

“Quando mais repetido for um padrão de atividade, mais forte será sua influencia.”

 

“Auriverde pendão de minha terra,

Que a brisa do Brasil beija e balança,

Estandarte que a luz do sol encerra

E as promessas divinas da esperança...

Tu que, da liberdade após a guerra,

Foste hasteado dos heróis na lança

Antes te houvessem roto na batalha,

Que servires a um povo de mortalha!...

Fatalidade atroz que a mente esmaga!

Extingue nesta hora o brigue imundo

O trilho que Colombo abriu nas vagas,

Como um íris no pélago profundo!

Mas é infâmia demais! ... Da etérea plaga

Levantai-vos, heróis do Novo Mundo!

Andrada! arranca esse pendão dos ares!

Colombo! fecha a porta dos teus mares!”

 

Hellinger diz que, por lealdade e fidelidade sistêmica, as crianças tomam sentimentos de outros membros e carregam, por eles, os fardos da família. Querem “pagar seus preços”. E, também por lealdade, dificilmente se consegue ter um destino melhor que o de seus pais e avós.

Tenta-se, desta forma, repetir o destino dos ancestrais, e todas as suas mazelas, todos os infortúnios.

A Lei da Hierarquia foi profanada pela escravidão. Filhos perdidos, pais perdidos. Mães que eram “pães”, e que continuam sendo. A estrutura familiar de desolação se mantém até hoje.

Quantas crianças são criadas sem pais em nosso país? Quantos irmãos desconhecidos, esparramados, dados em adoção? Qual é a real segurança social, garantida pelos pais?

Fora a grande quantidade de incesto, de violência doméstica.

Profundamente comum nas configurações de Constelações Familiares, é encontrar filhos que tomam o lugar do parceiro do pai / mãe. Deixam de viver sua vida para cuidar dos pais, ainda que esses não tenham solicitado. São filhos amorosos, que vivem intrometidos na relação dos pais, no casamento dos pais, transformando-se em bons e generosos parceiros afetivos substitutos.

No Brasil, podemos perceber o quanto os negros e seus descendentes são ainda discriminados, tanto racialmente quanto socialmente.

Quantos presidentes negros nosso país já teve? Quantos ministros?

Recentemente, a partir de 1996, os governantes passaram a olhar com mais critério para políticas públicas Trabalhei com negros e também com descendentes quase brancos, que, por lealdade, não conseguiam o sucesso profissional. Não conseguiam concluir a escolaridade. Ao contrário, muitas dificuldades de aprendizagem na infância e na adolescência. O desejo, até, de sair da escola, pois ela não dá “camisa” pra ninguém.

Uma vez constelei um menino de dez anos, com dificuldades escolares, em um trabalho individual no consultório, com o jogo da família, ou jogo da percepção e constatamos que elas estavam relacionadas à mãe, que se sentia honrada pela carga que a criança dividia ou carregava por ela. Foram trabalhados, nas constelações realizadas com a criança, sentimentos diversos que envolviam a exclusão, doenças e impossibilidades de aprender, crescer, se relacionar e ser próspero e feliz. Pela ascendência negra, incluímos várias gerações, especialmente do lado materno, chegando a um tataravô, especialmente, mas olhamos para muitos outros, em muitas gerações, com os quais o menino se identificava. O negro escolarizado tem sido uma conquista de cada geração, desde os primórdios, em nosso país. E o fato do menino “não gostar” da escola e ter dificuldades, era considerado bastante natural por ele e por sua família. A conexão com a ancestralidade se dá consciente ou inconscientemente, e se faz presente na vida das pessoas da família o tempo todo.

A Constelação Familiar, de algum modo, faz evidenciar ao campo que o passado passou.

Coloca as situações, repetições, influências, em “ordem”. Na verdade, traz uma nova ordem ao campo, que, como organismo vivo, parece registrar, aprender que os padrões podem ser quebrados.

Se, com a Constelação, pode-se discriminar os sofrimentos, os nós, os emaranhamentos e, a partir de posturas ritualísticas como a reverência e a devolução, a partir de frases de solução como “Sinto muito”, “Obrigado” e “Sim” ao destino trágico da família, pode-se dissolver as identificações, devolver os pesos, as culpas e se respeitar os infortúnios, é possível que haja a possiblidade de quebra dos padrões de repetição do sofrimento.

Pode-se lembrar que é possível fazer diferente. Pode-se lembrar que hoje é 2012, que é um outro tempo. E que, além disso, lá longe, antes mesmo de todo sofrimento, existia a paz, a hierarquia era respeitada, havia equilíbrio. Existia a dignidade, a riqueza, a prosperidade, a força.

Existia mesmo a nobreza. Afinal, quantos negros reis e rainhas vieram da África para o Brasil?

O desafio é reconhecer que são esses os padrões a serem resgatados agora. É com esta força que necessitamos nos conectar. Com a força da graça. E fazer diferente para homenagear aqueles que tanto sofreram.

Pensando assim, mesmo sem conhecer os negros de minha família, sei que eles estão lá. Não importa em que gerações. Reconheço todo sofrimento deles e todo sofrimento que veio de lá.

Sinto o sangue negro que permeia a alma de minha família. E, sei, na grande maioria das famílias brasileiras, pelo menos uma gota de sangue negro traz a conexão com os afrodescendentes e, por conseguinte, com a história desse povo no país.

Faz-se necessário que a nação olhe para o passado com respeito, que inclua, de fato, os negros. A inclusão social é a meta, que parte da afirmação de direitos. Aí poderemos ser um país próspero.

No entanto, reconheço as repetições e as dificuldades de fazer diferente.

Quanto aos negros de minha família, hoje os reverencio. E digo SIM ao destino de todos eles.

Dos assassinados, dos excluídos, dos açoitados. Dos caluniados. Dos pobres e miseráveis.

E peço sua benção para que eu possa fazer diferente. Para que eu possa seguir minha vida, oferecendo meu trabalho a todos eles. E que minha prosperidade, minha alegria, meu equilíbrio, minha paz, possam chegar até eles, todos os meus ancestrais e mostrar que não foi em vão. Que agora, de fato, eles estão livres. Pois a escravidão acabou, o sofrimento finalmente acabou, e eles podem descansar em paz.

 

Ana Lucia Braga

 

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Ana Lucia Braga

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